Uberaba – “a cidade dos espíritos”
Com o título de “A Cidade dos Espíritos”, a revista Veja de número 2170, de 23.6.2010, publicou reportagem sobre as peregrinações a Uberaba feitas por pessoas que desejam comunicar-se com familiares desencarnados. A matéria também comenta divergências entre espíritas uberabenses sobre possíveis comunicações “post-mortem” atribuídas a Chico Xavier.
Mais centros espíritas que igrejas
Apontada pela revista Veja como a “capital mundial do espiritismo”, a cidade mineira de Uberaba, onde Francisco Cândido Xavier viveu a maior parte de sua vida, teria hoje mais de 100 centros espíritas e apenas 54 igrejas católicas. Referindo-se ao espiritismo como uma doutrina “cuja característica mais divulgada é a possibilidade da comunicação entre vivos e mortos”, a revista destaca que Uberaba, mesmo depois da morte de Chico, é referência para quem busca estabelecer “uma ponte com a vida após a morte”. Descreve que “nos fins de semana, ônibus de visitantes circulam pela cidade à procura das sessões públicas de psicografia”. Sobre o perfil dessas pessoas, diz a matéria: “Quem vai aos centros espíritas quase sempre passou por grande trauma envolvendo a morte”. Geralmente perderam “de forma trágica ou inesperada um filho, os pais ou um irmão”. Classifica a comunicação como um “ritual”, onde “o médium se comunica com esses parentes falecidos, recebe deles uma mensagem e a transcreve no papel”.
Sobre o fato de algumas cartas trazerem referências a situações que seriam apenas do conhecimento de parentes, a revista coloca dúvida. Os repórteres teriam testemunhado que os médiuns fazem “previamente uma pequena entrevista com o interessado em receber a carta”. "É um encontro muito rápido, não mais de um ou dois minutos”, diz o médium Carlos Antônio Baccelli, do Lar Espírita Pedro e Paulo, um dos mais visitados pelos turistas. Para ele, isso é necessário para estabelecer a sintonia, e “Chico também tinha esse tipo de conversa preliminar”.
Chico Xavier estaria se comunicando?
A polêmica divide espíritas de Uberaba
A polêmica divide espíritas de Uberaba
Outro ponto destacado pela matéria de Veja refere-se a possíveis mensagens enviadas por Chico Xavier/espírito. Desde sua desencarnação, em junho de 2002, diversos médiuns afirmam receber mensagens suas, em várias partes do país. Entre estes estão Celso de Almeida e Carlos Bacelli, dirigentes de centros espíritas de Uberaba, ambos com livros publicados contendo presumíveis mensagens de Chico. No entanto, o filho adotivo deste, Euripedes Higino dos Reis, nega autenticidade a essas supostas psicografias. Relata que seu pai adotivo fez com ele um pacto segundo o qual qualquer mensagem que enviasse, após sua morte, teria um código, só conhecido por Eurípedes e por duas outras testemunhas presentes, quando da conversa entre ambos. Para Eurípedes nenhuma das mensagens até agora publicadas contém esse código. Outros, no entanto, sustentam que espíritos superiores, do nível de Francisco Cândido Xavier, não emitem códigos secretos e que a forma de se reconhecer a autenticidade de suas possíveis comunicações, segundo a doutrina espírita, está na superioridade de seu conteúdo. A polêmica divide as lideranças espíritas de Uberaba, classificada pela reportagem como “a cidade dos espíritos”.
Nossa opinião
Os peregrinos de Uberaba
Inegável a importância do trabalho entre nós desenvolvido por Chico Xavier. Podendo, tal como o fez no início de sua trajetória mediúnica, colocar seus dotes a serviço da melhor literatura, atraindo a atenção de exigentes críticos, optou, no entanto, por dedicar-se, preferentemente, à consoladora tarefa da intermediação de mensagens de caráter pessoal. Amenizou, com isso, a dor de centenas ou milhares de corações.
Pouco provável, no entanto, que uma centena de centros espíritas, na mesma cidade, passe a contar, de repente, com um imenso contingente de médiuns dotados da mesma e rara faculdade. Especialmente se considerarmos as naturais dificuldades de comunicação de espíritos chegados a outras dimensões em circunstâncias igualmente trágicas. A reportagem de Veja sugere que, em Uberaba, se está praticando uma espécie de “espetáculo” mediúnico, em nível de “atacado” e com fins proselitistas. Seria lamentável e dolorosa para o espiritismo a confirmação dessa suspeita. Mesmo que não configurada a hipótese, no entanto, o vai-e-vem de milhares de pessoas peregrinando por centros espíritas com o objetivo único de “ouvir os mortos” já sinaliza uma grave distorção dos verdadeiros fins de uma instituição espírita. Leva, ademais, e com facilidade, a que se distorça a própria identidade cultural do espiritismo, a se ver dos conceitos emitidos pela reportagem. Justo agora, quando outros setores do espiritismo, como aqueles que se reunirão no II Encontro Nacional da CEPABRASIL (3 a 6 de setembro próximo em Bento Gonçalves/RS), investem fundo na tarefa de estudar, debater e, talvez, propor o que entendam seja a genuína identidade do espiritismo!
Ambientes coletivos assim, onde haja, provavelmente, carência de vigilância e exacerbado mediunismo, descurando-se dos demais e superiores valores espíritas, favorecem o personalismo e o polemismo estéril, circunstâncias igualmente sugeridas pela reportagem.
Chico, onde estiver, não deve estar gostando nada disso!
(A Redação).
Editorial
Ficha limpa – um imperativo ético
O homem já reformou muitas leis e ainda reformará muitas outras. Espera!
(resposta dos espíritos à questão 797 de O Livro dos Espíritos)
A democracia brasileira avançou um pouquinho mais, no mês passado. Nossos ideais de ética e de integridade na política, igualmente, experimentaram, em tese, um avanço. Foi aprovada legislação vedando a candidatura a cargos públicos de pessoas que já tenham sido condenadas criminalmente em decisão prolatada ou confirmada por algum órgão jurisdicional colegiado. É o que se convencionou denominar de “ficha limpa”, exigível de candidatos a cargos eletivos.
É verdade que, no mesmo momento em que é redigido este editorial, a vedação começa a receber, em juízo, interpretações mais brandas, em nome do princípio da presunção de inocência aplicável a condenações ainda sem trânsito em julgado. Vale, no entanto, o esforço e a repercussão no legislativo de um anseio de todos quantos aspiram por uma política honesta, exercida por homens realmente probos.
O Brasil tem passado por experiências amargas por conta da corrupção que campeia em amplos setores políticos. É preciso dispormos de uma legislação capaz de assegurar, tanto quanto possível, que só homens e mulheres de moral ilibada e honestamente voltados ao bem comum, possam submeter seus nomes a cargos eletivos. O Livro dos Espíritos lamenta o fato de que, normalmente, as leis humanas “mais se destinam a punir o mal depois de feito, do que a cortar a raiz do mal” (q.796). No caso brasileiro, a situação é ainda pior. O que se tem presenciado é que, nem depois de praticados, os grandes crimes políticos têm recebido punição. Nossa legislação favorece a procrastinação dos julgamentos, retardando ou tornando infindável sua trajetória. A impunidade, infelizmente, tem servido de estímulo a que políticos desonestos sigam sua trajetória pública.
Mas também é verdade que se não houver corrupção por parte do eleitor não haverá igualmente lugar para políticos corruptos se elegerem. Por isso mesmo, ainda que a legislação e os processos moralizadores no âmbito público tardem, restará sempre a oportunidade de o eleitor fazer a sua criteriosa seleção, elegendo somente candidatos detentores, subjetiva e objetivamente, de “ficha limpa”. Essa condição, a de deter, na ordem pessoal ou pública, uma ficha realmente limpa não é atribuível apenas aos políticos. É exigência ética de todo o cidadão. E a ética está na base do processo democrático.
Opinião do Leitor
José Rodrigues
Apenas hoy (14.6.20010) recibo Opinião de Enero-febrero 2010 y marzo 2010. Además de todo lo bueno que hay allí, me informo del fallecimiento de José Rodrigues.
No lo sabía. Me entristece profundamente. Era una de los espíritas más cultos y decididamente librepensadores de Brasil. Era un admirador entusiasta de Porteiro. Es una tristeza que a medida que enevejecemos vamos despidiendo a tantos compañeros que han partido antes que nosotros a la espiritualidad.
Jon Aizpúrua – Caracas, Venezuela.
Opinião em Tópicos
Milton Medran Moreira
Romances espíritas
O perfil da maioria dos espíritas brasileiros foi desenhado a partir dos chamados “romances espíritas”. Eles frequentam os espaços nobres de todas as grandes livrarias do país. No imaginário popular - e dos próprios livreiros - são o que de mais representativo há da literatura espírita. Sua trama é quase sempre a mesma: uma encarnação pautada por erros, ódios e orgulho, seguida de outra onde o espírito, em circunstâncias adversas e com muito sofrimento, resgata as faltas da anterior experiência.
A fórmula é um avanço relativamente às concepções religiosas tradicionais. Introduz a ideia da reencarnação. Desmitifica o poder das religiões. Desloca para a consciência e para a ação do indivíduo seu processo de transformação e crescimento. Propicia uma releitura dos dogmas cristãos do céu e do inferno, retirando deste a condição de eternidade e substituindo-a pela ideia do caráter transitório da pena. Por tudo isso, acaba por atrair crentes que vislumbram ali uma forma mitigada da clássica vingança divina, base da teologia judaico-cristã. Mas, por outro lado, inculca na consciência do indivíduo um exacerbado sentimento de culpa e a ideia de que somente pelo sofrimento será possível superá-la.
Mandatários divinos
Presentes também, e invariavelmente, nesses relatos da ficção espírita a ação maléfica e presumivelmente corretiva de entidades espirituais, encarnadas ou desencarnadas, “predestinadas” a desempenhar o papel de verdugo do espírito em recuperação. É o “mal necessário”, a “justiça divina” valendo-se da maldade, da vingança e do ódio humanos como instrumento de punição e de retificação.
Nessa mesma linha, o mundo espiritual aonde chega a alma atormentada pela culpa é, igualmente, povoado de “agentes da justiça divina”. Investidos de um verdadeiro mandato divino, a eles tudo é facultado em termos de aterrorizar o espírito que aporta nas “zonas umbralinas”. Humilham-no, jogando em sua cara censuras e vilipêndios, recordando-lhes os erros cometidos e atormentando-os por sua prática. A ideia é sempre a mesma: só sofrendo idênticas dores àquelas infligidas a outrem, o espírito pode alcançar sua regeneração.
Justiça divina x justiça humana
Se essas concepções estão corretas e se tais instrumentos de retificação são adequados à recuperação de um espírito culpável, tudo o que a humanidade construiu até agora, em termos de justiça e humanismo não passa de um tremendo equívoco. Por milênios, e sob o império das teocracias, procedíamos exatamente como agem, segundo a referida literatura, os “agentes da justiça divina”, encarregados da retificação de espíritos culpados. Tínhamos como base fundamental da justiça o princípio do “olho por olho, dente por dente”. Em nome de Deus, não hesitávamos em torturar, esconjurar e matar quem não procedesse segundo o que concebíamos como “lei divina”. Chegamos a usar como pretexto, a alegação de que o mesmo fogo que matava o corpo libertaria o espírito. Daí as fogueiras em que sacrificamos os adoradores de deuses falsos e os hereges, supondo-nos, invariavelmente, autorizados pelo Velho ou pelo Novo Testamento.
Só no instante em que nos rebelamos contra o poder religioso conseguimos, a duras penas, nos libertar desse jugo, construindo novos valores sobre os quais repousam as leis e seus mecanismos de execução. O humanismo, a democracia, o Estado de Direito são genuínas conquistas do espírito contra a religião que, antes, o aprisionara.
Humanismo já!
Esses mesmos ventos libertadores, ao que parece, não sopram nas colônias espirituais para onde migram nossas almas, sempre vergadas por alguma culpa, depois da morte. Pelo menos é o que se depreende das tramas apresentadas como “literatura espírita”. O que aqui consideramos vingança, fator que sempre agrava um delito, lá é apontado como justa contraprestação retificadora. Atos aqui puníveis como ofensivos à dignidade e aos direitos alheios são, lá, erigidos a normatizações da justiça divina para cuja execução é indispensável o concurso de verdugos, promovidos à condição de agentes da vontade de Deus.
Também a reencarnação, nesses folhetins, dificilmente é apresentada como etapa vitoriosa, conquistada por esforços anteriores do espírito em evolução, mas como pesado fardo a ser por ele arrastado em resgate aos erros antes cometidos.
De duas uma: ou nossos médiuns psicógrafos só conseguem acessar tramas vividas em mundos psíquicos bem mais atrasados do que aquele aqui construído, ou está na hora de modernizarmos e democratizarmos as colônias espirituais que nos esperam após a desencarnação. Em ou em outro caso, a palavra de ordem deve ser: humanismo já!
Notícias
Léo Indrusiak e as relações espiritismo/ecologia
Em palestra proferida no Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, na noite de 5 de julho, o pensador e dirigente espírita Léo Indrusiak, diretor do Instituto Espírita Terceira Revelação Espírita – IETRD – e ex-presidente da USE Sul, União das Sociedades Espíritas da região sul (Porto Alegre), abordou as relações entre espiritismo e ecologia. O conferencista chamou a atenção para a o fato de as propostas espíritas e ecológicas haverem nascido simultaneamente na Europa do Século 19 e que O Livro dos Espíritos, editado em 1857, aborda diversas questões ecológicas.
Para Indrusiak, na foto, uma das causas pelas quais o espiritismo não alcançou, na contemporaneidade, a mesma repercussão da ecologia deve-se ao fato de haver sido tomado como uma religião: “O espiritismo não é uma religião, embora muitos espíritas e, inclusive, instituições espíritas o vejam como tal”, declarou Léo Indrusiak, na conferência. Ao final, abriu espaço para debates, onde vários assistentes contribuíram com outras reflexões sobre o tema.
Léo Indrusiak: O espiritismo só não tem a mesma repercussão da ecologia porque foi tomado como uma religião.
Dando prosseguimento à sua programação de palestras públicas mensais, sempre na primeira segunda-feira do mês, o convidado do CCEPA, em 2 de agosto, é o empresário porto-alegrense Rogério Hipólito Feijó Pereira. Seu tema: “Estrutura do Cérebro – Comando do Espírito”.
A atividade acontece às 20h30min, no auditório do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, na Rua Botafogo, 678, Bairro Menino Deus.
.
.
Escritor paranaense visita CCEPA
João Carlos, que, em seu Estado, desenvolve atividades culturais ligadas a movimentos populares, lançou recentemente o livro “Colorado – A primeira escola de samba de Curitiba”, obra editada pela Fundação Cultural de Curitiba. Em sua visita, o intelectual paranaense fez entrega ao presidente do CCEPA, Rui Paulo Nazário de Oliveira (foto ao lado), de um exemplar de seu livro, destinado à biblioteca da instituição.
.
.
Enfoque
ALLAN KARDEC: O AUTOR DA DOUTRINA DOS ESPÍRITOS?
Augusto Araujo
Doutorando em Ciência da Religião (PPCIR/UFJF).
Contato: acdaraujo@gmail.com
Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857. (Allan Kardec)1
Quem quer que tenha tido em mãos um livro de história da filosofia deve ter notado que logo nos primeiros capítulos são apresentadas as doutrinas filosóficas dos chamados filósofos “pré-socráticos” ou “fisiólogos”. O que, talvez, poucos saibam é que não existe, a rigor, a doutrina filosófica de Tales de Mileto, ou de Heráclito de Éfeso, por exemplo. De fato, a maioria dos textos de que dispomos desses pensadores é insuficiente para se afirmar a existência de tal doutrina. O que se tem são fragmentos (frases, pedaços de frases, às vezes, uma única palavra) citados ou parafraseados por outros autores e filósofos. Uma lista tão variada que inclui pensadores como o grego Aristóteles e o cristão e pai da Igreja Clemente de Alexandria; e tão extensa que cobre o período desde o século IV a.C. até o século VI d. C.
Assim, se tomarmos Heráclito como exemplo, é preciso que se diga que não há o livro "Sobre a natureza"2, a ele atribuído. Nem sabemos ao certo se ele escreveu mesmo um livro; ou, em caso afirmativo, se era esse mesmo seu título. Aquilo que nos manuais de história da filosofia é apresentado como a doutrina de Heráclito é tão somente uma interpretação arbitrária dos fragmentos encontrados e catalogados3 . No século XX, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) demonstrou que, dependendo da ordem em que os fragmentos são considerados ou organizados, ou dos pressupostos filosóficos assumidos na leitura desses fragmentos, diferentes interpretações se estabelecem. E, dessa forma, as interpretações serão sempre arbitrárias, uma vez que nem a obra original nós temos para comparar e verificar a validade delas 4.
Agora, se, num exercício de analogia, olharmos de maneira isenta para o modus operandi de Allan Kardec (1804-1869) veremos que se passa algo muito semelhante ao que acontece com os historiadores da filosofia no caso acima. Kardec, ao publicar suas obras sempre insistiu que a doutrina não era sua, mas dos Espíritos. No entanto, a confiar ainda nos relatos de Kardec, como se dá esse procedimento de “codificação” da doutrina dos Espíritos? Ele tem fragmentos de ensinos que vêm de fontes diversas e tem de arbitrariamente "codificá-los", ordená-los. E o faz. Nós não podemos verificar se essa interpretação é a mais adequada porque não temos acesso às fontes kardecianas (especificamente não temos acesso ao conteúdo bruto das comunicações por ele interpretadas). Esse impedimento metodológico de verificação tem me impedido de caracterizar o espiritismo como uma ciência.
Em outras palavras: penso que afirmar a existência da "doutrina de Heráclito" nas interpretações dos fragmentos a ele atribuídos, e afirmar que existe uma doutrina dos espíritos na interpretação das comunicações recebidas por Kardec, possui o mesmo grau de incerteza. Ora, como afirma o próprio Kardec na frase citada acima: “Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857”. O original diz: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857" (o grifo é meu).
Aqui gostaria de fazer um breve comentário sobre a escolha do uso do verbo “retocar” para traduzir o francês “remanier”. Não que esta tradução esteja equivocada, em minha opinião ela apenas enfraquece o sentido original do termo francês. A etimologia do verbo “remanier” remete a “manier” que tem o sentido primeiro de “manipular”, tocar com as mãos. Daí que o Dictionnaire de l’Académie Française (6eme Édition, 1835), defina o verbo “remanier” como: manipular novamente, reparar, modificar, refazer. Ou, ainda, segundo o Dictionnaire Poche Larousse (2008): mudar a composição, modificar. No contexto dessa pequena observação, uma tradução mais precisa talvez fosse: "Da comparação e da fusão de todas estas respostas coordenadas, classificadas e muitas vezes reparadas (modificadas, refeitas) no silêncio da meditação, que eu formei a primeira edição do Livro dos Espíritos, o qual apareceu a 18 de abril de 1857".
Uma última analogia, talvez esclareça melhor meu posicionamento. Embora o trabalho de pesquisa que venho realizando, e que culminará na publicação de minha tese de doutoramento, se baseie todo na leitura e interpretação da obra de Allan Kardec, e neste trabalho não se encontre nada que Kardec não tenha dito e pensado, há que se concordar que se trata de meu trabalho e não de Kardec. Penso que não importa se as fontes de uma pesquisa sejam os Espíritos ou um pensador “de carne e osso”; se alguém compila, classifica, modifica, edita, interpreta suas fontes, ele é o autor.
1 KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. In: ______. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2009. P. 353. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra). O texto original em francês é: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857". (Cf.: KARDEC, Allan. Ma première initiation au espiritisme. In: ______. Oeuvres Posthumes. Union Spirite Française et Francophone. s/d. p. 128).
2 O título Péri Physeos (em grego) é um título genérico atribuído a grande parte das supostas obras dos pensadores gregos originários.
3 No início do século XX, o helenista alemão Hermann Alexander Diels (1848-1922) publicou a obra Os fragmentos dos pré-socráticos, na qual colecionou os fragmentos dos chamados pré-socráticos e os classificou, após tê-los retirado das obras onde se encontravam citados ou parafraseados. Posteriormente, Walther Kranz (1884-1960) acrescentou um comentário interpretativo aos fragmentos catalogados por Diels. Esta obra tornou-se, desde então, referência para todos os trabalhos críticos e interpretativos da filosofia antiga. A classificação DIELS-KRANZ, tornou-se normativa para todas as referências aos fragmentos.
4 Ver: HEIDEGGER, Martin. Heráclito. A origem do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998. (Trad.: Márcia Sá Cavalcante Schuback). Para outra interpretação, ver: BERGE, Damião. O Lógos Heraclítico. Introdução ao estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969.
Fiquei muito honrado e feliz com a possibilidade de publicar meu pequeno artigo aqui no "Opinião". Agradeço aos amigos Néventon Vargas e Milton Medran pela oportunidade de tornar acessível ao público espírita as reflexões de um não-espírita sobre a obra de Allan Kardec. Espero que os leitores apreciem e me enviem suas opiniões, ainda que contrárias (e principalmente essas, a fim de que a discussão sobre o pensamento do fundador do espiritismo se amplie cada dia mais. Abraço a todos e todas!
ResponderExcluirCaríssimos. Há muito tempo atribuo a "condificação" efetuada não a Allan Kardec, mas a Rivail. Com isso, pretendo destacar o homem e ofuscar o mito (Allan Kardec). Entendo que o meu pensamento vai ao encontro dos estudos de Augusto Araújo. Parabéns pela iniciativa de publicar o artigo. Antônio Margarido
ResponderExcluir