A questão da identidade espírita
Amigos da CEPA reúnem-se no II Encontro Nacional da CEPABrasil, de 3 a 6 de setembro, em Bento Gonçalves/RS, para discutir o delicado tema da identidade do espiritismo.
Quantos espíritas tem o Brasil?
Está começando mais um censo demográfico no Brasil. Teoricamente se saberá quantos espíritas existem no país. No censo de 2.000 eram 2.337.432. Nada mais que 1,38% da população. A Federação Espírita Brasileira, principal órgão congregador das instituições espíritas no país, defende a existência de um número bem maior. Hoje estima em 20 milhões de seguidores e simpatizantes da doutrina sistematizada por Kardec, o que representaria cerca de 10% da população a ser aferida no censo.
Dependendo dos parâmetros aceitos pela FEB para identificar quem é espírita, é possível que o número supere aquela estimativa. Com certeza, uma quantidade bem maior de brasileiros frequenta algum dos 12 mil centros espíritas filiados à FEB e milhares de outros não federados. A questão, no entanto, é que, provavelmente, a maioria dos frequentadores das instituições espíritas não se enquadre em uma definição teórica da condição de espírita. Talvez, inclusive, muitos colaboradores e dirigentes dessas instituições sequer aceitem todos os pressupostos teóricos postos por Allan Kardec como fundamentais da doutrina e façam deles uma mescla com dogmas das religiões cristãs.
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Um evento para discutir a questão da identidade espírita
A Associação Brasileira de Delegados e Amigos da CEPA – entidade que sustenta, no Brasil, o pensamento da Confederação Espírita Pan-Americana – discute a delicada questão da identidade espírita no II Encontro Nacional da CEPABrasil, de 3 a 6 de Setembro, no Hotel Dall’Onder, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha.
O Encontro, aberto à participação de todos os interessados no tema, já está com sua lotação quase esgotada. Começará na noite de 3 de setembro, às 20 h, com uma conferência do advogado e jornalista Milton R. Medran Moreira, com o tema “Espiritismo, dos Fundamentos às Consequências”, e findará na manhã de 6/9, com um painel versando justamente sobre a “Identidade do Espiritismo”, com a participação de Ademar Arthur Chioro dos Reis (médico, Santos/SP), Adão Araújo (empresário, Bento Gonçalves/RS), Marcelo Henrique Pereira (jurista, São José/SC), Luiz Signates (professor universitário, Goiânia/GO) e Cristian Macedo (historiador, Porto Alegre/RS). Nos três dias de sua realização, o Encontro apresentará conferências, painéis e mesas-redondas sobre o espiritismo, nos seus enfoques científicos, filosóficos e morais, com a participação de pensadores espíritas de diferentes Estados brasileiros e uma delegação de cerca de 20 argentinos, liderados pelo presidente da CEPA, Dante López (Rafaela/AR).
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Nossa Opinião
Antes que percamos a identidade
Inegável a forte influência do espiritismo no quadro de “crenças” do Brasil. Pesquisa Datafolha, em 2007, por exemplo, atesta que 44% dos católicos brasileiros aceitam a reencarnação, um princípio aqui popularizado pelo espiritismo e que contraria os dogmas da Igreja. Em compensação, a mesma pesquisa aponta que um universo de 64% de pessoas que se declararam “espíritas” disse crer na virgindade de Maria, mãe de Jesus, dogma católico incompatível com a racionalidade espírita. Quase a totalidade dos “espíritas” pesquisados (95%) declarou-se crente da ressurreição de Jesus, e 33% deles admitem o dogma cristão da existência de Satanás.
Tudo isso confirma que o espiritismo é uma forte presença no imaginário popular brasileiro, sem, no entanto, se constituir, em meio a essa grande massa de “crentes”, numa clara e definida proposta científica e filosófica, nos moldes estabelecidos por Allan Kardec.
Discutir isso de forma aberta, sem o preconceito da excludência ou a pretensão da titularidade da “pureza doutrinária”, é um desafio para o movimento espírita brasileiro. Até onde se podem reconhecer as naturais diferenças dos distintos segmentos, guardando a identidade comum? De quais elementos constitutivos é feito o laço que deve unir todos os espíritas?
A Associação Brasileira de Delegados e Amigos da CEPA, entidade promotora, e o Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, que organiza o evento, com a colaboração do Lar da Caridade, de Bento Gonçalves/RS , entendem que é hora de se aceitar esse desafio, antes que percamos inteiramente nossa identidade. (A Redação)
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Editorial
Um convidado muito especial
“Já podemos pensar laicamente o Espiritismo, sem angústias, nem sentimentos de culpa por não sermos mais religiosos. Sentimo-nos comprometidos com a formação de espaços destinados a expandir esse sentimento comum para que neles se exercite e se aprimore a consciência espírita livre, a cultura espírita”.
(Krishnamurti de Carvalho Dias - 1930/2001 - em “A Descoberta do Espírito”)
Nossa leitora Denize de Assis (Guarulhos/SP) enviou, mês passado, à redação de Opinião mensagem recordando que em 18 de julho, se vivo fosse, o pensador espírita carioca Krishnamurti de Carvalho Dias, nascido naquela data de 1930, completaria 80 anos. Sugeria escrevêssemos algo a respeito disso.
Às vésperas da realização do II Encontro Nacional da CEPABrasil (de 3 a 6 de setembro) mais do que registrar o aniversário de seu nascimento, cabe prestar uma homenagem de reconhecimento e de profundo afeto a “Krishna”, como era, carinhosamente, chamado por seus amigos. Ele foi, sem dúvida, uma das grandes vozes a alertar para a necessidade de se conceder melhor precisão à questão da identidade espírita, tema central do Encontro dos Amigos da CEPA do Brasil, em Bento Gonçalves, no próximo mês. Mais do que isso, foi o precursor daquilo que os amigos da CEPA propõem, hoje: um movimento espírita aberto à liberdade de pensamento e ancorado na proposta, também livremente construída, de Allan Kardec. No opúsculo “Roustaing”, lançado no Congresso da CEPA, em 2000, em Porto Alegre, Krishnamurti deixou esta lúcida mensagem:
“Com protestos de sincero respeito pelos religiosos do movimento, sejam roustainguistas ou não, com pensamentos de paz endereçados ao respeitável Roustaing, aguardo confiante em que um dia os espíritas já libertos da religiosidade e decididamente compromissados com Rivail, ainda façam isso: organizem-se em um segmento padrão de um modo não federativo, mas meramente cooperativo, consensualista, isto é, onde ninguém subordine nem seja subordinado a ninguém em pirâmides de poder, mas todos cooperem uns com os outros, horizontalmente, igualitariamente, formando um contingente alternativo ao outro, ao sistema federativo, cada qual reunindo de modo pacífico e harmonioso, as duas compreensões espíritas: os ainda religiosos e os já libertos dessa limitação, todos convivendo lado a lado”.
Nas suas “palavras finais” do trabalho “A Hora e a Vez do Segmento Padrão”, (www.cepanet.org) apresentado no Congresso de Porto Alegre, três meses antes de sua desencarnação, Krishna declarava “total e absoluta solidariedade” ao “segmento padrão” que identificava na CEPA, generosamente qualificada por ele como “luminosa”.
Luminoso é ele. Luminosas suas propostas de união e de cooperação de todos os espíritas a partir das bases fincadas por Kardec, fundamento irremovível da genuína identidade espírita. Outro, aliás, não é o objetivo do Encontro de Bento Gonçalves.
O XVIII Congresso Espírita Pan-Americano (Porto Alegre/2000), contra o qual setores organizados do movimento espírita investiram tão duramente, realizou-se em momento onde, talvez, essa consciência ainda não havia desabrochado. Busca-se, no evento de Bento Gonçalves consolidar essa proposta de um espiritismo progressista, livre-pensador, não atrelado a hierarquias religiosas, afinado com os novos tempos, capaz de tornar viável o lema kardeciano de “trabalho, solidariedade e tolerância”.
Cremos, sinceramente, ser isso possível. Mais do que possível, inadiável. Mais do que inadiável, indispensável à própria sobrevivência do espiritismo. Krishnamurti de Carvalho Dias sonhava com esse estágio. Adubada e energizada de novos nutrientes, a cepa da videira espírita há de ser revigorada, neste evento, na “capital brasileira da uva e do vinho”. Por tudo isso, ”Krishna”, com certeza, estará lá. É nosso convidado muito especial.
Krishnamurti foi uma das grandes vozes a alertar para a necessidade de se conceder melhor precisão à questão da identidade espírita.
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Opinião em Tópicos
Milton Medran Moreira
No tempo da palmatória
Não é do meu tempo. Estou ficando antigo, mas nem tanto assim. Lembro, porém, do que meus pais contavam sobre a escola no tempo deles. A palmatória era, então, instrumento disciplinar oficial em todas as salas de aula. A qualquer ato de indisciplina do aluno, o professor chamava-o ali em frente e, diante de todos os colegas, aplicava-lhe tantos golpes nas palmas das mãos quanto mais grave fosse a indisciplina.
Sem ter conhecido a palmatória, testemunhei, no seminário onde me internei dos 9 aos 15 anos, cenas que hoje levariam o padre-prefeito à cadeia, por crime de tortura a incapazes. Um dos castigos que infligia a seus tutelados era a fricção de urtiga no dorso nu. Enquanto a meninada trabalhava na roça, ele os vigiava, empunhando um galho daquela erva brava que, em contato com a pele, produz uma terrível ardência. Sem qualquer cerimônia, usava-a contra quem fizesse corpo mole no trabalho.
Nunca cheguei a sofrer essa humilhação. Mas, como penitência por alguns pecados declarados no confessionário, lembro de ter ficado de joelhos sobre grãos de milho, na sala geral de estudos, em frente a todos os demais seminaristas.
Palmadinha no bumbum
Recordo isso no momento em que é enviado ao Congresso Nacional projeto de lei que proíbe qualquer castigo físico ou humilhante, não mais na escola, onde há muito foi abolido (hoje são os alunos que torturam professores), mas no ambiente doméstico. A palmadinha no bumbum, prática a que a maioria dos pais, em todos os tempos, recorreu, como um corretivo leve, mas presumivelmente eficaz, estaria para entrar na história com o mesmo conceito de atraso e de barbárie que hoje atribuímos à palmatória do tempo de meus pais ou à urtiga e aos grãos de milho que torturavam dorso ou joelhos dos seminaristas de meu tempo.
Quando se referia aos trabalhos que teve com a educação de seus nove filhos, minha mãe costumava dizer que em mim, que sempre tivera um temperamento dócil, ela nunca precisou dar sequer uma palmada. A expressão “nunca precisou dar” permite compreender a real função geralmente atribuída à palmadinha no bumbum: a de derradeiro recurso, quando todos os outros tenham falhado. A nova legislação, se aprovada, sequer permitirá esse recurso, até aqui, tido como último.
A função da lei
Pode parecer radical demais a medida. Especialmente quando, como no caso de minha mãe, a palmadinha só era dada, de fato, como recurso derradeiro. E, isto é o mais importante, sem qualquer sentimento de raiva, mas com o objetivo único de educar.
Assim mesmo, acho que devemos apoiar a iniciativa. Toda a lei se reveste do chamado caráter geral e abstrato. Geral, porque atinge a todos, indistintamente. Abstrato porque não é feita para contemplar a situação concreta de uma pessoa, mas visa a disciplinar todas as situações enquadradas, teoricamente, numa hipótese. Não há dúvida de que, sob o pretexto de educar, muitos pais abusam dos meios corretivos e descarregam em seus filhos toda sua agressividade e todas suas frustrações. Para ser pai e mãe não se exigem concretamente quaisquer condições de maturidade psicológica ou de equilíbrio emocional. A lei poderá, de alguma forma, servir de freio, pela ameaça da sanção, a pais e mães despreparados para o delicado ofício de educar.
O diálogo
Tão mais complexo se apresenta o ato de educar quanto melhor formos capazes de avaliar o patrimônio trazido pelo educando de outras experiências de vida. Minha mãe, que não tinha qualquer noção acerca da preexistência do espírito, entendia, no entanto, que filhos apresentam diferenças inatas que exigem distinção de tratamento. No atual estágio do conhecimento humano, não se poderia, ainda, colocar esse paradigma, genuinamente espírita, como pressuposto da educação. A uma conclusão, no entanto, podemos todos chegar, diante do avanço dos conceitos da psicologia, da pedagogia e do humanismo: nada substitui o diálogo no processo da formação do caráter e aquisição de valores éticos. O castigo físico foi tido, por longo tempo, como a forma mais eficiente de corrigir defeitos e educar. Mas deixa marcas que, a médio e longo prazo, deformam, sem, de fato, contribuir para a educação do indivíduo. O projeto de lei ora em discussão pode ser, em nosso país, o prelúdio de um novo tempo, no sempre delicado campo das relações pais e filhos.
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Notícias
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Grupo do CCEPA estuda tese acadêmica
sobre experiências mediúnicas
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O Grupo de Estudo coordenado por Valdir Ahlert, que se reúne às quintas-feiras à noite, no Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, durante os três últimos meses ocupou-se de estudar uma tese acadêmica apresentada pelo médico psiquiatra Alexander Moreira de Almeida, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O trabalho “Fenomenologia das Experiências Mediúnicas, Perfil e Psicopatologia de Médiuns Espíritas” foi apresentado para a obtenção do título de Doutor em Ciências, na área de Psiquiatria. O relato do estudo, pelo grupo do CCEPA, foi feito no auditório do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, na noite de 14/7 pelos integrantes do mesmo: Valdir Ahlert, Magali Ceroni Guerra, Walmir Gambôa Schinoff, Beatriz Urdangarin, Magnólia da Rosa, Luiz Almir Pinheiro Almeida e Ivânio Rogério Oliveira.
Um dos objetivos do trabalho do Dr, Alexander foi estudar o perfil sociodemográfico e a saúde mental de 115 médiuns espíritas da cidade de São Paulo, analisando o histórico de suas experiências mediúnicas e sua adequação social. A conclusão da pesquisa mostrou que, ao contrário do afirmado em algum tipo de literatura científica, os médiuns estudados, tem escolaridade e renda acima da média da população e baixo nível de transtorno dissociativo ou psicótico. Após a apresentação da tese, o Dr.Alexander Moreira de Almeida concedeu entrevista à Folha Espírita (São Paulo/agosto 2005), onde destaca o dado apresentado em pesquisas de opinião segundo o qual, a adesão ao espiritismo no Brasil tem crescido na medida em que aumenta o nível de escolaridade da população e que, dentre os segmentos religiosos no Brasil, o espiritismo é o que apresenta os melhores níveis sociais e de escolaridade. Na entrevista, Alexander também destaca que muitos intelectuais difundiram a ideia, “sem bases em pesquisas sólidas, de que religiosidade era algo associado à ignorância, culpa, infelicidade e imaturidade psicológica”, mas, destaca, com dados de sua pesquisa com médiuns espíritas, que a prática da mediunidade, no meio espírita, “está associada e melhores indicadores de saúde e bem-estar”. Interessados em conhecer a íntegra da tese podem encontrá-la em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5142/tde-12042005-160501/ .
Na foto, Luiz Almir, Magnólia, Magali, Valdir (coordenador) e Ivânio, integrantes do Grupo de Estudos que, juntamente com Beatriz e Walmir, estudou a tese de doutorado de Alexander.
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Em setembro não tem conferência. Tem Encontro em Bento
Como sempre acontece, na primeira segunda-feira do mês, neste 2 de agosto, temos conferência pública no Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (20h30min – Rua Botafogo, 678). Rogério Hipólito Feijó Pereira é nosso convidado para falar sobre “Estrutura do Cérebro – Comando do Espírito”.
Em setembro, excepcionalmente, não haverá conferência. A equipe do CCEPA estará em Bento Gonçalves, participando do II Encontro Nacional da CEPABrasil, que enfoca a temática central “Espiritismo – A Questão da Identidade”, com a participação de pensadores espíritas de diversos Estados brasileiros. Há, ainda, poucas vagas para esse evento. Interessados podem procurar o CCEPA ou comunicar-se com Tereza, pelo e-mail terezasama@hotmail.com.br
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Enfoque
A Lenda do Chico/Kardec
Eugenio Lara
Arquiteto e designer gráfico, membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc), fundador e editor do site Pense – Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense]. Autor dos livros em edição digital Racismo e Espiritismo, Milenarismo e Espiritismo e Os Celtas e o Espiritismo.
E-mail: eugenlara@hotmail.com
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"Quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda".
[Frase do editor do jornal “Shinbone Star” ao senador Ransom Stoddard, personagens do filme “Quem Matou o Facínora” (1961), de John Ford]
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Há lendas de todos os tipos: lendas urbanas, religiosas, folclóricas, históricas. Mas lenda espírita é algo que não havia imaginado. Vejo que isso existe mesmo e, amiúde, surge e ressurge na imprensa espírita, na internet, no cotidiano do movimento espírita. Oradores, médiuns e dirigentes espíritas são os grandes mentores desse tipo de coisa. Mas afinal, o que é uma lenda? E lenda espírita, existe isso?
Lenda é uma história fantasiosa, algo bem próximo do mito, parte integrante da tradição de todos os povos. Da lenda para a realidade, a distância é abissal, incomensurável. Quem convive com o poder e o vivencia sabe muito bem disso. Criam-se lendas, mitos, coisa folclórica a todo instante. A versão distorcida da realidade vira lenda. Uma ideia errônea, uma interpretação deturpada, enviesada dos fatos, se for sistematicamente repetida, de modo sutil ou insidioso, com o tempo acaba adquirindo o status de verdade. A mídia mal-intencionada usa e abusa desse recurso e os fofoqueiros de plantão sabem bem como isto funciona. A imprensa marrom sobrevive às custas desse tipo de expediente.
O mito e a lenda, em seu sentido mais nefasto, surgem quase como a fofoca, o mexerico, a maledicência, a informação plantada, o factóide. É a filtragem criada pelo imaginário. Um processo complexo que desafia antropólogos e historiadores.
Já a lenda legítima, que se desenvolve ao longo do tempo, tanto quanto o mito, esta sim é coisa séria. Historiadores, sociólogos e antropólogos, notadamente os estudiosos da religião, procuram decifrar os mitos e lendas de determinada civilização. O formato mitológico, mítico de interpretação da realidade, serve então de estudo na montagem de um quebra-cabeça que os aproxime da verdade dos fatos. Trata-se de um objeto de estudo fundamental para o entendimento de nossa própria história.
Enquanto que a lenda inventada, tatuada, plantada, concebida e gestada na mente de pessoas fascinadas, sedentas de poder e de glória, de legitimidade, torna-se perigosa, desprezível, porque pouco tem de inocência, de boa intenção. Desse tipo de gente, o umbral está cheio...
Triste constatar que uma nova lenda espírita ressurge no seio do espiritismo. A de que Chico Xavier tenha sido a reencarnação de Allan Kardec, confirmando assim a profecia de seu então protetor, o espírito Zéfiro, que afirmou ao fundador do espiritismo, em 1857, que ele reencarnaria no século vindouro, no século 20.
Não há indícios de que Rivail tenha reencarnado no século passado. Todavia, a quantidade de candidatos a esse posto é enorme. Eu mesmo já conheci uma meia dúzia dessa gente mentirosa e arrogante, que se acha o Druida de Lyon numa nova edição, a fim de granjear para suas ideias obtusas o status de filosofia respeitável. E para não ficar somente no lero-lero, cito duas personalidades não muito conhecidas. Uma delas surgiu no ABC e chama-se Osvaldo Polidoro (1910-2000), o criador do chamado Espiritismo Divinista. Toda sua doutrina se alicerça na lenda de que Polidoro tenha sido a reencarnação de Kardec. O que Herculano Pires já escreveu sobre essa personalidade atormentada foi suficiente. Não é necessário perder tempo com ela. Cito apenas como informação.
Um outro caso, surgido em Niterói-RJ, é o do filho de Kardec. Sim, isso mesmo, o filho de Allan Kardec reencarnado, cuja primeira obra denomina-se Eu Conheci Allan Kardec Reencarnado. Trata-se de Erasto de Carvalho Prestes (1926-2009), a quem certa vez recebi em minha casa e participou de algumas edições do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita. Ele considera seu pai como o próprio Kardec, que deixou uma obra ainda por ser publicada. E o será, segundo ele, lançada no momento propício, conforme a vontade do “plano espiritual superior”...
Existem outros kardequinhos candidatos à notoriedade, à legitimidade artificial, criadores de doutrinas, de sistemas e que, acobertados por uma falsa humildade, se escondem por trás de supostas revelações de espíritos tão confusos e pseudossábios quanto eles. Essa de que o Chico seja Kardec é de doer. Se o jornalista Boris Casoy fosse espírita ele bradaria o seu bordão: “isto é uma vergonha!”.
Curiosamente, em torno dessa polêmica, poucos ousaram perguntar ao Chico se ele era realmente o Kardec. E quando perguntaram, negou veementemente: “Não, não sou. Não tenho nenhuma semelhança com aquele homem corajoso e forte”. Esse testemunho encontra-se em um livro escrito pelo estudioso e escritor espírita, Wilson Garcia, intitulado Chico, Você é Kardec? que praticamente esgota o assunto e coloca uma pá de cal nessa contenda ridícula.
E, por infortúnio do saudoso Freitas Nobre, um dos maiores mentores dessa nova lenda é justamente sua viúva, Marlene Rossi Severino Nobre. É difícil acreditar que uma pessoa que sempre se mostrou plena de seriedade acredite nessa tolice. A folha de serviços desta companheira é admirável, no entanto, ela praticamente joga na sarjeta seu currículo espírita em prol dessa lenda cretina e inútil.
Nessas situações, pouco importam os fatos. Pouco importa se Chico Xavier negou ser o Kardec reencarnado. Pouco importa se a lenda é mais interessante do que o fato. Já que é assim, fiquemos com a lenda. É o que essa gente faz.
Por ignorância ou interesse suspeito, os espíritas foram, ao longo do tempo, abraçando lendas e mitos em torno de Kardec, dos espíritos e do espiritismo. É um processo sociológico e antropológico complexo de se apreender. Todavia, quando alguém tenta demonstrar o contrário da lenda ou do mito, o que há é a marginalização, o despeito ou mesmo a perseguição silenciosa e “fraterna”, tudo em nome da religião, do evangelho, do amor e da caridade, e que assim seja...
Reconheço que as palavras nesse breve artigo são incisivas. Mas para lidar com mitos e lendas inventadas é necessário mesmo ser um pouco áspero. Senão essa coisa cria raiz, começa a germinar e se não cortarmos a cabeça logo de cara, o que teremos é um novo Ovo da Serpente. Aí então será tarde demais...
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Opinião do Leitor
O Autor da Doutrina dos Espíritos
Parabéns ao Augusto Araújo pelo poder de síntese e argumentação no artigo “Allan Kardec: O Autor da Doutrina dos Espíritos?” (Opinião 176). A analogia entre os fragmentos dos filósofos gregos da antiguidade e o trabalho de Kardec nos obriga rever o conceito comum de Filosofia. Ao dimensionar Kardec como autor da obra espírita, o artigo nos remete a sua prática de manipulação de ideias coletivas. Ideias coletivas não são integralmente de ninguém, mas representativas de um momento histórico e ambiente social determinados. Desta forma, a própria intenção kardequiana de encontrar a opinião universal dos Espíritos fica redimensionada e negada. Se Kardec compartilhasse um olhar mais relativista do mundo, próprio do século XXI pós-moderno, talvez colocasse outro título e traçasse outra meta para seu empreendimento.
Leopoldo Daré ,médico, Ribeirão Preto – SP.
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