Por Wilson Garcia. São Paulo - SP
Enquanto
alguns leitores ficaram surpresos com a posição assumida por Bezerra de Menezes
na história do roustainguismo brasileiro, outros se disseram perplexos e alguns
manifestaram contrariedade com a publicação dos fatos. Estes últimos
prefeririam que nada fosse dito para não deslustrar tudo o que se sabe e se
escreveu sobre a pessoa de Bezerra de Menezes, considerado que é um verdadeiro
herói. Bezerra figura como espírito guia de uma centena de centros espíritas,
instituições federativas estaduais, grupos e indivíduos. A ele dezenas de
pessoas recorrem diariamente em busca de consolo, proteção, cura e orientação.
Livros o exaltam, palestras relembram seus feitos e as imagens fotográficas
mais difundidas dele o mostram como uma figura doce, delicada, sensível e
altamente preocupada com o próximo. Seria ele um santo se o termo não estivesse
comprometido com o léxico católico; sobra, então, para os seus admiradores
classificá-lo como Espírito Superior, segundo a escala elaborada por Allan
Kardec. Na prática, porém, o fulcro da ideia permanece o mesmo, ou seja, a
figura do homem nascido do útero materno foi transmutada para a do herói que
venceu todas as etapas de uma dura jornada até alcançar o patamar superior do
verdadeiro mito.
Longe
estamos de pretender mudar a história ou de querer convencer os leitores do
contrário. Não foi para isso que escrevemos o livro PONTO FINAL, o reencontro
do espiritismo com ALLAN KARDEC, no qual a pessoa de Bezerra de Menezes aparece
entre os principais pilares do roustainguismo brasileiro. O objetivo
fundamental, a tese básica da obra é a conexão (espúria) implementada entre a
autonomia moral exposta na filosofia espírita e a heteronomia dominante na
ideologia de Roustaing, que resultou na cultura híbrida do meio espírita
brasileiro. O que surgiu um dia como um passo à frente na história do
conhecimento humano – o espiritismo – tornou-se um passo atrás na sua
(con)fusão com a pandêmica idolatria de base católico-roustainguista.
Bezerra
de Menezes está presente nessa parte da história como personagem de destacada
participação, como o dizem os fatos narrados nos documentos da época, entre os
quais as publicações feitas pela própria Federação Espírita Brasileira (FEB)
como o então jornal Reformador, inteiramente redigido pelas mãos do nosso
personagem. Ali, quinzenalmente e por mais de um ano, Bezerra narra suas lutas
em prol da concretização de um ideal que assumiu quando integrou o Grupo Sayão,
na segunda fase da existência desse que denominamos no livro de “Grupo Sayão: o
roustainguismo brasileiro”. Foi frequentando esse grupo e suas reuniões
mediúnicas que Bezerra se convenceu de que as teses heterônomas ali defendidas
eram não simplesmente espíritas, mas necessárias ao espiritismo. Foi, também, a
partir daí que decidiu levar à FEB tais teses e por meio desta espalhar pelo
Brasil a religião pregada por Roustaing.
O
Bezerra de Menezes conhecido e amado pelo Brasil não é este que surge de suas
próprias palavras pelo Reformador. Também não é o que assume autonomamente a
decisão de implantar o modelo inspirado pelo Grupo Sayão de ensino e prática
espírita, defendendo-o como superior a qualquer outro. Nem mesmo aquele que
aceita a proposta de dirigir com poderes totais uma instituição em falência
econômica e o faz, de modo aberto, autoritário e expresso, contra os que se lhe
opõem, a fim de atingir os objetivos dos quais estava convicto, objetivos que
hoje se mostram totalmente equivocados porque tiveram influência decisiva nos
destinos da filosofia espírita no Brasil.
Os
fatos destroem o personagem mitológico do nosso tempo? Não, absolutamente! Os
fatos o humanizam, o trazem para o rés do chão, dão-lhe o colorido do ser que
era, capaz de grandes feitos e iguais equívocos. Tirar dele os traços
fundamentais das criaturas de carne e osso é traçar em linhas de pura ficção
uma narrativa baseada num cenário imaginário, que pode agradar ao sentimento e
com certeza a isso se destina, mas não instrui nem educa. Quando o ser humano é
exaltado apenas pelos grandes feitos, que os mortais comuns não alcançam, dá-se
à luz o extraordinário que alimenta as almas sequiosas de coragem. Quando,
porém, o outro lado do ser humano aparece com suas cores sombrias, é normal que
os seus admiradores cerrem os olhos e tampem os ouvidos na busca de protegerem
os seus heróis e, por fim, a si próprios.
Por
mais dura, porém, que a história seja é preciso preservá-la acima das
conveniências humanas. No caso específico do espiritismo, em que está em jogo o
futuro de uma filosofia capaz de conferir ao ser humano um saber que o liberta
das amarras culturais e espirituais a que está submetido, não há outro caminho
senão o da sua inteireza. Não nos cabe estabelecer julgamentos a respeito
daquilo que o ser humano decide e pelo qual age, pois isso é de competência
dele mesmo e será feito por ele em acordo com sua consciência, conforme ensina
a doutrina que Kardec elaborou. Apontando, porém, os percalços do caminho,
estamos esclarecendo os fatos e dando sentido à história, a fim de que ela
sustente os novos tempos em sua necessária aliança com a razão. Trata-se, é
certo, de fazer uma opção entre aquilo que dignifica o indivíduo e aquilo que o
enfraquece; numa palavra, entre a autonomia moral e a heteronomia que amordaça.
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